4.1.12

Peixe


Fresquinho

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Despescando o curral 



Enquanto aqui, diariamente, acompanhamos com apreensão as cheias sem motivo aparente de estradas e avenidas, na Ilha de Marajó todas as atividades são regidas anualmente pelas estações bem marcadas; mensalmente, pela lua e diariamente, pela maré. Como um ciclo respiratório em que cada inspiração ou expiração dura em média seis horas, os igarapés, como alvéolos, se enchem e se esvaziam em movimentos suaves. De água em vez de ar. Movimento conhecido e alternado, diferente do de carros, imprevisível. Não sei, depois de tanta má noticia nas últimas semanas sobre o trânsito insolúvel, o otimismo da indústria automobilística e o fluxo de movimento bloqueado, hoje me deu saudade da paz do Marajó, onde as pessoas ainda vivem segundo as regras ditadas pela natureza, onde vão de lugar a outro sem impedimento via bike ou búfalo, de canoa ou charrete, sem pressa. E mesmo assim, as coisas fluem, vêm e vão, têm ritmo, movimento constante, respiram e expiram.

À tardinha a gente saía para despescar o curral, uma estrutura labiríntica feita com bambu-taboca (Guadua sp) e talas de marajá (Bactris sp), amarrados com cipó-titica (Heteropsis sp), todas espécies típicas da Amazônia. A construção tem uma arquitetura peculiar, pois é feita de um jeito que o peixe entra durante a maré cheia e fica preso na maré vazante. Para poder capturá-los a água tem que estar bem baixa, por isto, chegamos lá por terra (se é que podemos chamar um mangal de terra) durante a vazante. Assim cortamos caminho e estávamos no local por volta das cinco horas da tarde, quando ainda é dia e a água não vazou totalmente. Quando a maré está cheia, podemos alcançar o mesmo curral - mas é fundo pra pegar os peixes-, pegando um barco no igarapé Tucumandubinha, passando pelo Tucumanduba e chegando na Boca da Glória por onde já se entra no marzão sem fim da Baía do Marajó - um glorioso encontro de águas doces e salgadas. Só para entender: a Baia do Marajó é formada pela foz dos rios Pará e todos os outros que lhe dão vazão - Anapu-Pacajá, Jacundá, Araticu, Cupijó, Tocantins, Moju, Acará e Guamá - abrigando, portanto, água do Oceano Atlântico e a doce dos rios que ali desaguam. Limpa e de baixa salinidade, esta água é um prato cheio para um mergulho refrescante.

Mas, voltando à despescagem: Seu Brito, pai da minha amiga Katia, o dono da fazenda, passa se esgueirando de lado pela entrada estreita do curral e logo sai com o puçá cheio de peixes que estavam lá a esperar numa piscininha. Tem dias de sorte com muito siri, pitu, piramutaba, carataí, tainha, pescada amarela e camuri (robalo flexa). Outros com muitos cascudos, bagres e baiacus que se incham todos e viram de ponta cabeça arreganhando a boquinha quando o tiramos do molhado. Todos, é claro, são devolvidos à água (sabem por lá que podem prepará-lo para tirar o veneno, mas, com tanta variedade, para que arriscar?). Acontece ainda de alguns espertinhos chegarem de barco, vindos por outras vias de acesso, antes do dono do curral. O mangal, a praia e os principais igarapés de acesso pertencem à Fazenda São Jerônimo. Mas, sim, há piratas por lá. Ladrões de galinha, ops, de peixes.

Descrever o sabor dos peixes e pitus pescados assim e preparados pela Dona Jerônima logo depois, no calor da lenha? Eu não sei, não. Não consigo. É demais para meu arsenal de adjetivos. Basta dizer que nenhum peixe comprado no Ceagesp, Mercadão ou feiras-livres de madrugada terá aquele sabor. Só indo lá para experimentar. Ou fiquem a sonhar.



Foto e texto de Neide Rigo no blog Come-se

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